Saturday, November 11, 2006

Resenha

O doce vermelho das beterrabas. Mônica Botelho Alvim

O livro de João Batista Ferreira inaugura uma poética dos sentidos, já expressa no título, quando reúne paladar e visão, partindo de uma imagem-objeto cotidiano, isto é, presente na "natureza". Pensar nisso me remete a Paul Cézanne. O pintor afirmava trabalhar com uma espécie de "percepção primordial" - que não faz distinção entre os sentidos - e que a separação de tato, olfato, visão, foi aprendida com a ciência do corpo humano. Para ele, aquilo que é vivido não é reencontrado ou construído a partir dos dados dos sentidos, mas, ao contrário, aquilo que é vivido se oferece como o centro de onde se irradiam os sentidos.
Podemos experimentar isso a partir de seu trabalho. As pinturas de Cézanne buscam trazer a totalidade da natureza tomando forma, nos provocam corporalmente, por inteiros, fazem, como afirmou Merleau-Ponty, com que não necessitemos de um "sentido muscular" para ter a volumetria do mundo, podendo, diante da obra, ver a profundidade e o aveludado.
Penso que a obra de arte tenha essa tarefa: provocar a corporeidade do espectador, reverberar, ser o centro a partir de onde se irradiem sentidos. Para Merleau-Ponty essa foi a genialidade de Cézanne, seu estilo de pintar tinha a capacidade de, mais que criar uma significação existencial para ele próprio (pintor), despertar as experiências por cujo meio elas seriam enraizadas em nossa vida (espectadores).
Voltemos ao doce vermelho das beterrabas, obra que também nos provoca e nos permite experimentar.
- Eram todos tão brancos - diz, acompanhando uma formiga perdida na toalha da mesa.
Mastigo outra beterraba. Mais doce que a anterior.
Meu irmão grita outra vez da janela.
Nosso pai geme no seu quarto.
Quando todos dormem, às vezes parece que escuto as beterrabas crescendo no escuro.
Nesse trecho do conto, vários sentidos se nos apresentam, são convocados: visão, tato, paladar, audição. Coração. Um de cada vez. Para o leitor, entretanto, não há vez a vez, mas uma complexidade. Podemos sentir o vermelho, saborear a forma arrendondada da beterraba, ver sua imagem no escuro, sentir medo. Cada frase convoca sentidos, que significam a próxima frase, que convoca sentidos e constrói significados. A brancura dos imaginários carneirinhos me faz sentir a maciez da seda, que se confunde com o vermelho dolorido e intenso, que surge do mastigar da beterraba, que se faz doce e retoma a suavidade da seda a partir da narrativa de João Batista, que toma outros sentidos para cada leitor.
- Alguém precisa tirar a poeira dos olhos abertos de nosso pai.
Ler isso me provocou. Fez-me fechar os olhos. Entregou-me por uns instantes à vertigem da escuridão. Como quando criança, descia entregue e extasiada uma enorme montanha russa.
Os contos colocam o leitor diante do inusitado, deslocando-o, provocando sentidos que nascem. Uma poética, criação de sentidos a partir do sentir.
"Falta apenas que uma destas mulheres cante, para uma voz humana diga, por palavras nossas de humanos, o que tão grandes coisas significam. E, tendo-o dito, olhe para nós em silêncio."
José Saramago, in Poética dos Cinco Sentidos, O Ouvido, Lisboa, Bertrand, 1979.
Mônica Botelho Alvim
Psicóloga clínica, professora no curso de psicologia da Universidade Católica de Brasília e diretora do Instituto de Gestalt -Terapia de Brasília. Doutoranda em Psicologia Clínica na UnB, onde pesquisa a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e vem construindo um diálogo da Gestalt-terapia com a Arte e a Estética.